07 dezembro 2005

O Cachorro e um Cachorro

[Post Categoria: Conto]


Mais uma vez, a rotina se repete. Madrugada de algum dia de semana, a porta abre e ele chega com uma sacola branca na mão direita. Tranca a porta novamente e caminha até o balcão de mármore da cozinha, fazendo um tilintar de objetos de plástico. Acende a luz fluorescente, criando um clarão pela casa inteira. Levanto, tento chamar a atenção, mas o máximo que consigo é um "calado". Ele esvazia a sacola sobre o balcão, começando aquele ritual sinistro como se fosse a primeira vez. Seringas, ampolas e agulhas populam a mesa como a água preenche uma bacia. Calmamente, ele quebra as ampolas uma a uma e injeta-as.

Tento esquecer. Vou até o lado da geladeira e não há comida nem água pra mim. Estou magro, definhando. Desde que cheguei aqui, todo o dia que ele abre a porta, estou esperando, aguardando notícias de como foi seu dia, alegre por sua chegada, comemorando como se fosse a última vez que ele estivesse voltando - pois tenho medo de que um dia ele não voltará mais. Tento lhe mostrar os truques que aprendi, mas a única coisa que ele aceita é que lhe traga seus chinelos.

Mas desta vez foi diferente.

Ele estava no balcão da cozinha, sentado em um banquinho de aço, daqueles com uma das pernas bambas. Olhou para mim, puxou a agulha do braço, largou tudo e me abraçou. Me abraçou como se arrependesse de tudo. E a partir daquele momento, tudo mudou.

No outro dia, ele chegou mais cedo do trabalho, com presentes. Me deu atenção, comida, água, saiu comigo, como se tentasse compensar todo o mal que ele tinha feito a si mesmo durante esse tempo todo. Eu o conheci quando ele começou a se prejudicar com as drogas. Logo quando era pequeno. Eu morava com seu amigo - um psiquiatra - que lhe dissera que eu poderia ajudá-lo. Me mudei, e desde então acompanho-o. Nunca, desde aquela época, ele tem sido tão atencioso. Prestando atenção em tudo o que faço e em todas as necessidades, retribuindo com um sorriso e pequenos gestos de alegria qualquer coisa que eu faça.

Passaram-se algumas semanas. Ele, totalmente recuperado, começou a sair com os amigos do trabalho. Freqüentemente aparecia em casa com mulheres (lindas por sinal). Parecia outra pessoa. Até que percebi o que estava acontecendo.

Ele havia descoberto o valor da vida. Ele havia descoberto o quanto tudo era importante, que ele estava se prejudicando esse tempo todo, enquanto tanta gente tentava lhe dizer o quanto ele era importante - inclusive eu. Em compensação, ele passou a retribuir a essas pessoas, enquanto eu, seu mais fiel companheiro, foi deixado de lado.

Mais uma vez, ele deixou de prestar atenção aos meus truques. Quando rolava, sentava, deitava, lhe trazia o jornal. Por maiores que fossem minhas habilidades, elas não eram mais necessárias. Me tornei inútil. Indesejável, pois ele tinha coisas mais importantes à fazer. Tinha amigos que nunca falaram com ele quando ele mais precisou, e agora cairam na sua vida como uma formiga entra em um piquenique. Passou a chegar de madrugada denovo, mas sem a sacola de plástico branco. Emanava um forte cheiro de bebida, passava reto por mim, ainda que eu pulasse e agitasse a cauda, e ia direto pra cama.

Mais uma vez, meus pratos ao lado da geladeira ficaram sem comida e água.
Se pra cada vencedor, deve haver pelo menos um perdedor,
Será que para cada ser feliz, deve haver um infeliz?

3 comentários:

Anônimo disse...

Não sei nem o q comentar Diogo, fico besta com teus posts.

Anônimo disse...

muito afude
genial

Luiz Madeira disse...

Cacete Fou... Assim, puxa-saquismos do Walbher a parte, você devia juntar essas coisas em algum lgar, e um dia lançar um livro de contos hoho, você tem talento!

Beijão proce fou!