31 outubro 2007

Não é o que você está pensando

Aqueles filmes são ridículos. Um velho debilitado pelo tempo ou pelas pernas fracas - o que vier primeiro - fica isolado em uma casa os dias inteiros. Sem ter o que fazer, fica observando os vizinhos e acha que todos estão tramando algo de suspeito. Acha que o bobó de camarão que o neto lhe deu de presente estava envenenado e é tudo um plano para obter o legado da família mais cedo que o tempo iria permitir. Ridículos. Nunca vão entender o que é paranóia.


Sou psiquiatra, tenho 38 anos e durante toda a minha vida dependi da observação de detalhes para extrair informações importantes. E no consultório, isso sempre deu certo.


Agora, imagine que um dia, você acorda, olha pro lado e percebe que o travesseiro da sua esposa não está sobre a cama. Em uma fração de segundo, você simplesmente para e mata 3/4 dos seus neurônios úteis tamanho o nervosismo.


Na noite anterior, tínhamos ido a uma festa de gala. Era o lançamento de um livro da esposa do meu melhor amigo. Era filósofa. Eu tinha abusado um pouco demais do coquetel e tinha dito para minha esposa que voltaria para o hotel. Ela, empolgada com a situação, disse que ficaria um pouco a mais, conversando com meu amigo, e depois voltaria.

Bem que achei estranho demais o interesse dela nessa viagem. Ela mal conhecia a esposa do meu amigo. E afinal de contas, por que cargas d'água ela iria querer me acompanhar em uma viagem chata para Três Figueiras? Não tinha nada de interessante lá, passamos as vidas lá e já conhecíamos cada canto da cidade. Todos com quem mantinhamos contato não moram mais lá! Comecei a entender...

Antes de viajarmos, ela me disse que tinha adicionado Carlos no messenger. Achei muito estranho, pois não fui eu que passei a ela o contato dele. E por que diabos ela estaria procurando meu amigo? Bem que eu vi que ela estava demonstrando muita empolgação com aquelas conversas... Bem antes de viajarmos, há precisamente 10 anos, na realidade, casamos brigados com Carlos. Nos dois éramos apaixonados por Sônia, minha atual esposa. Eles continuaram se dando bem, mas nós não nos falamos direito até hoje.


Levantei da cama, mais eriçado que meus cabelos. Liguei para a recepção. Minha esposa não havia deixado recados. Liguei para o celular dela. Chamava, chamava, e não atendia. Uma, duas, quinze vezes. Que tipo de adúltera sai com o melhor amigo alheio e nem sequer dá um sinal de vida? Afinal, quem eles queriam enganar por aqui? Coloquei a primeira roupa que encontrei no armário e saí do hotel.

Abrindo o armário, percebi que na noite anterior ela havia pego seu melhor vestido para a ocasião. Era um vestido vermelho, decotado, que eu mesmo dera pra ela no nosso aniversário de 5 anos de casamento. Como eu não havia percebido isso antes? Bem debaixo do meu nariz. Eu nunca devia ter saído daquele coquetel. Por mais bêbado que estivesse, era melhor eu ter vomitado em pleno salão do que ter deixado a minha esposa com aquele pária.

Cheguei no apartamento dele. Quando eu acabei de bater na campainha dele, meu celular toca. É a atenciosíssima recepcionista do hotel. Me avisou que minha mulher tinha acabado de chegar. Meu amigo não atendia a campainha. Será que ele tinha deixado ela no hotel? Esqueci de perguntar isso para a recepcionista no telefone. Detesto quando eu penso nas coisas tarde demais.


Apressado, entrei no hotel ignorando todos os "bom dia"s dos porteiros, a fila de carros importados que obstruía meu caminho e subi imediatamente ao meu quarto. Para minha surpresa, em cima da mesa, havia uma caixinha de presente e uma carta. A carta dizia:

Amor, feliz aniversário de 10 anos.
Aproveitei que não acordavas pra tentar buscar a surpresa e te entregar antes que eu tivesse de ir trabalhar. Dormias como uma pedra, mas pelo jeito já foi. A camareira deve chegar daqui a pouco com a fronha que mandei lavar. Cheguei ontem da festa e dormi, sujei o travesseiro todo de maquiagem.
Aproveita bem teu presente. É o Mazda preto. O Carlos ajudou a escolher.

Te Amo,

Sônia



Segundos depois, a camareira abre a porta e diz:

Olha só o que quase levei para lavar:
O celular da dona Sônia estava no meio das roupas sujas!