06 janeiro 2008

Reveiller

- Bem na hora! O leitão acabou de ficar pronto! - abri a porta recebendo Anita que vinha comemorar a virada do ano conosco.

Anita largou seus pertences em um canto, como já estava acostumada, e logo se acomodou na sala, onde comíamos com os pratos no colo, bebendo, ouvindo música e conversando.

- Ah, sim! Anita, esse é o Ricardo, um amigo meu de longa data... - apresentei-o.
- Oi Ricardo!

Ricardo fez questão de levantar-se e cumprimentar Anita calorosamente quando ela chegou. Desta vez, de boca cheia, ele acenou com a cabeça enquanto erguia seu copo em um gesto de brinde.

- Ricardo é mudo, Anita. Desde que o conheci.
- Nossa, mas o que houve? Acidente, voto de silêncio ou algo parecido?
- Olha... Ele não fala muito sobre isso!

Risos. Ricardo riu, inclusive, embora eu também não soubesse a razão dele não falar.

- Vocês se conhecem há quanto tempo? - perguntou Anita enquanto se recuperava da piadinha.
- Não muito, faz uns 2, 3 anos. Ele luta, foi meu professor de aikido.
- Que legal! Mas me explica uma coisa, fiquei curiosa. Como que vocês são amigos assim sem trocar uma palavra? Ele só escuta o que tu tens pra dizer, isso nunca incomodou vocês?

Eu e Ricardo nos olhamos. Ele levantou sinalizando que ia até o banheiro.

- Não... Não sei explicar, na verdade. Com certeza ele me escuta bastante. A gente simplesmente se entende, o Ricardo não precisa falar pra mim saber o que aflige ele. Claro que é difícil, no início eu estranhei muito, mas daí tu conhece ele e vê que ele é um cara gente fina. Às vezes eu até ajudo ele a se expressar, quando ele precisa MESMO falar.
- E ele trabalha com o que? - questionou Anita ainda intrigada pela figura.
- Informática. Daí isso nunca foi problema, se comunica tudo por email mesmo.

Ricardo voltou do banheiro.

- Puxa, admiro a força dele. Conta aí, o que tu já teve que falar por ele?
- Ah, de tudo um pouco. Já liguei pra mãe dele no dia das mães, expliquei pra um cara de uma loja hippie que o gesto que ele estava fazendo significava "me dá dois desses" e não "paz e amor", uma vez até me declarei por ele para uma menina. Ficaram juntos por 1 ano.
- Óó, que bonitinho.

Ricardo olhou para mim fixamente, como se acabasse de ter percebido algo. Não sabia dizer se ele tinha esquecido ou lembrado de algo. Na dúvida, aproveitei pra contar as novidades para Anita.

- O Ricardo tá tocando conosco na banda. - contei para Anita.
- Sério? E o que ele toca?
- Teclado e vocais.

Ricardo ria denovo. Depois, fez gestos tão nítidos que eu podia ouvir ele dizendo "não, só toco teclado mesmo!". Anita terminou seu prato de leitão e já estava se levantando, preparada para repetir.

- Bah Ricardo, mas com teu amigo cozinhando deste jeito, vai ficar todo mundo quietinho por aqui! Vou lá pegar um pouco mais.

Alguns pratos, copos, cigarros e minutos depois, virou o ano. Vimos os fogos, conversamos mais um pouco e Anita foi embora. Pouco tempo depois, Ricardo decidiu ir também. Eu já abria a porta quando senti alguém cutucar meu ombro.

- Que foi, Ricardo?
- Obrigado. - respondeu. Respondeu, e então foi a minha vez de perceber que eu não precisava dizer mais nada naquele momento. E me calei.


Obrigado Ricardos e Anitas.