24 outubro 2006

Sozinho no Escuro

Olhei em volta e as ruas estavam tomadas de balcões com placas grossas de madeira com a escritura: "Informações".
Resolvi terminar com o mistério, fui até uma e dirigi a palavra a um rosto conhecido:
- Com licença, podes me informar qual o motivo de tantos balcões? -
perguntei.
- Acho que o senhor não entendeu... - falou em voz baixa - ... também estou
perguntando.

03 outubro 2006

Exceto pelo sorvete

Não saía de casa por nada. Tinha medo do escuro. Tinha medo do claro. Mas acima de tudo, havia algo que lhe assombrava permanentemente. O tédio. De tanto medo, acabava com medo de não ter o que fazer. Mesmo dentro de casa, bolava coisas que poderia fazer sem o menor risco envolvido. Não que fosse a coisa que ele mais amasse no mundo, mesmo que, por anos, tenha vivido assim.

Daí um dia um amigo de velhos tempos apareceu na porta da casa dele. Havia anos não recebia visitas. Pois tinha medo delas. Podiam ser assaltantes. Ou até homicidas. Mas não seu amigo de infância. Não ele. Achava. O amigo andou por tempos difíceis e resolveu convidá-lo para comer um sorvete, relembrar os velhos tempos e colocar em dia as novidades que, àquela altura, viraram uma enorme pilha de informações que nem com todo o tempo do mundo poderia ser contada.

Hesitou. Não deixava a casa há anos. Fazia até o rancho do mês no e-bay. E se pegasse uma doença? E se limpassem a casa enquanto ele estivesse fora?
Mas não podia ser tão mau. Apenas um sorvete. Que mal poderia fazer? No máximo uma amigdalite, uma infecção, um resfriado. Mas talvez já estivesse imune, tamanha a quantidade de antibióticos que tomava sem motivos. E então foi. Foi ser feliz na sorveteria.

Mal deixaram a calçada e foram vítimas de um seqüestro relâmpago. Nosso amigo, inexperiente em situações de contato físico com pessoas, sacudiu-se, com medo do bandido, e levou uma facada. Facada essa desferida com um estilete velho e enferrujado, provavelmente a origem da tuberculose no mundo. Levaram tudo de ambos. Dinheiro, roupas caras, relógio, tudo. E deixaram os dois em uma estrada.

Os dois conseguiram carona em um ônibus que estava voltando para a cidade. Um pelotão de escoteiros acolheu-os, enquanto cantava irritantes músicas de acampamento, assistia um desenho animado barulhento que passava nos pequenos monitores pendurados no topo do ônibus e crianças ranhentas se esfregavam nas duas vítimas, ainda que uma delas - em choque - ostentava uma sangrenta ferida na altura do apêndice. Voltaram para a cidade, enrolados em cobertores. O medroso voltou para a casa assim que pode, e seu amigo de infância, depois de acompanhá-lo, fez o mesmo. E não tomaram o sorvete.

No outro dia, ao buscar a correspondência, entre o bolo de contas com o qual estava habituado, o amigo de infância do temeroso homem encontra um bilhete escrito em uma folha de caderno rasgada:


Obrigado. Ontem tive o melhor dia da minha vida, exceto pelo sorvete.